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Rosangela Martins é formada em
Direito pela UFMT, é Juíza Federal no Rio de Janeiro e professora de Processo
Civil.
Para discorrer sobre o empoderamento feminino
e a relevância da manutenção da feminilidade, eu entrevistei com exclusividade,
a Juíza federal, Dra. Rosangela Martins.
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Como a senhora avalia o empoderamento da
mulher e a importância da feminilidade nos dias atuais?
R: Se olharmos pela janela do tempo e voltarmos
90 anos atrás, e especialmente a partir da década de 60, veremos que avançamos
muito, muito mesmo no rompimento de uma cultura machista e patriarcal arraigada
e estrutural, presente em todos os ambientes de nossa sociedade: familiar,
empresarial, educacional e institucional. No Brasil podemos mencionar como
importantes conquistas o direito ao voto feminino em 1932, o estatuto da mulher
casada em 1962 e a Lei do Divórcio em 1977. Reconhecer as incontáveis conquistas
é fundamental, conhecer o passado nos dá a dimensão dos avanços alcançados,
potencializa essas vitórias e nós dá um direcionamento do que ainda é
necessário, porque é preciso também reconhecer que o movimento pela igualdade
de gênero continua a ser uma necessidade nos dias atuais. E qual a minha
percepção em relação ao empoderamento feminino com a feminilidade? Bem, a
cultura masculina e patriarcal vem de tempos muito remotos e ao longo da
história da humanidade há muitos exemplos de ações que enfraqueceram
características típicas do feminino; a intuição, o lúdico, a criatividade, a
capacidade de acolher e a própria sensualidade foram relegadas e condenadas,
passaram a ser vistos como sinais de fraqueza ou luxúria. Então, não eram
apenas os direitos das mulheres que foram suprimidos, a cultura masculina
contribuiu para o enfraquecimento das características do feminino. Como
resultado, tínhamos não apenas mulheres com seus direitos feridos, mas também
com seu feminino adoecido. Depois, na luta pela igualdade de gênero, o próprio
movimento feminista, sem perceber, reforçou a cultura masculina; no geral e em
algum nível, nós mulheres passamos a nos comportar como homens no ambiente
corporativo, até porque era esse o modelo que tínhamos, o mundo do trabalho corporativo
só era conhecido pela lente dos homens. Passamos não só a reproduzir o
comportamento masculino no ambiente de trabalho, mas também nos desgarramos da
nossa essência feminina, milhares de nós passaram a detestar nosso ciclo
menstrual, a relegar nossa intuição, a enfraquecer nossa criatividade e nossa
capacidade de acolhimento; não queríamos reproduzir apenas o papel de dona do
lar e “mãe de família” exercidos por nossas mães e avós e todas aquelas que nos
antecederam, e passamos a valorizar apenas o fazer, o agir, o pensamento
racional, pragmático, o embate, comportamentos típicos do universo masculino.
Muitas mulheres dizem: se existir outra vida além dessa, na próxima quero ser
homem. Sem falar nas inúmeras mulheres que se “masculinizaram”, consciente ou
inconscientemente, para se proteger de assédios, cantadas. Mulheres que mudaram
seu jeito de se vestir, deixaram de se maquiar, de usar salto, para ficarem
menos atraentes e, assim, evitar os assédios, as piadinhas de mau gosto. Se
você acha que isso soa um exagero da minha parte, infelizmente vou te contar
que ainda hoje isso acontece, claro que em menor escala, mas acontece. Eu mesma
conheço várias mulheres, amigas e conhecidas, que ainda passam por esse dilema.
Eu converso sempre sobre isso com muitas mulheres e homens, sim, com os homens,
porque acredito que essa pauta só vai avançar verdadeiramente se tivermos
homens e mulheres lado a lado, se ajudando e se compreendendo mutuamente; é
igualmente importante lembrar que, do lado reverso, essa cultura machista
também pesou (e ainda pesa) sobre o homem, que não podia chorar, demonstrar
sentimentos, que tinha de ser o “garanhão”, entre tantas outras coisas. Em seu
livro “A Jornada da Heroína” (que recomendo a leitura especialmente para as
mulheres), Maurreen Maurdock menciona um professor vietnamita e suas lições
sobre a ilusão da dualidade e o quanto ela nos prejudica, “não pode haver
dualidade, nenhum eu separado. Estamos todos interconectados, nós inter-somos.
(...) A dualidade é uma ilusão, há a direita e a esquerda; se você toma um
lado, está tentando eliminar a metade da realidade, o que é impossível.”
Paralelamente a tudo isso, nas últimas décadas, especialmente no século XXI, já
com tantos direitos assegurados, começou um novo movimento pelas mulheres,
agora em busca do resgate do feminino, e esse movimento que tem levado tantas
mulheres a questionar o modelo de trabalho até aqui adotado por nós. Acredito
que é um novo caminho sendo construído, em que mulheres exercerão seus papéis,
sejam eles quais forem, sem negligenciar e/ou esconder seu aspecto feminino,
sua feminilidade, que se expressa no acolher, na criatividade inovadora, na
intuição. Em que a mulher quer exercer seu soberano direito de ser e expressar
suas vontades e habilidades, sem medo do julgamento. É tempo de mulheres e
homens aprendermos a dançar entre as forças do masculino e do feminino.
Gilberto Gil estava muito à frente do seu tempo quando em 1979 escreveu a
canção “Super-homem”, quando ele diz que “vivi a ilusão de que ser homem
bastaria, que o mundo masculino tudo me daria”, por meio da música ela já nos
trazia essa reflexão sobre a necessária convivência do masculino e feminino em
cada um de nós: da força e da sensibilidade, do racional e da intuição, do agir
e do criar.
Como juíza, a
senhora percebe algum preconceito do público masculino em lidar com as
conquistas das mulheres?
R: Ainda temos sim
preconceitos a romper, vou mencionar um exemplo vivenciado por mim logo que
ingressei na magistratura, que bem ilustra. Eu e meus colegas de concurso, um
grupo de 30 pessoas, estávamos ouvindo um colega juiz já mais antigo na
carreira, que estava ali para compartilhar conosco algumas experiências dele no
exercício do cargo. Em determinado momento, esse colega saiu da pauta jurídica
para dar um “conselho” para as mulheres que, como eu, acabavam de ingressar na
carreira. Ele disse mais ou menos com essas palavras: vocês mulheres precisavam
ter a consciência de que não é possível ser boa em tudo, se você for uma boa
juíza, não será uma boa mãe e uma boa esposa, tampouco vai ser bonita; se for
uma boa esposa e boa mãe, não será boa juíza. Nunca ouvi ou li questionamento a
respeito da capacidade de um homem de ser bom pai e bom profissional ao mesmo
tempo. Ouvir aquilo de um colega sobre a mulher foi um choque para mim, aliás,
todos ficamos chocados e em absoluto silêncio por algum tempo, antes de
expressarmos nossa opinião. Felizmente esse tipo de fala e comportamento já é
minoria, porém demonstra que a incompreensão e o preconceito com os papeis que
podem ser simultaneamente exercidos pela mulher ainda existe e persiste na
sociedade, especialmente nos espaços de poder, que continuam predominantemente
masculinos.
Como e quando a senhora decidiu ser juíza e
quais foram os seus maiores desafios em sua trajetória profissional?
R: Eu, desde criança, sempre fui muito
questionadora e sempre tive um senso de justiça apurado, ver alguém sendo
tratado de maneira desigual com base na cor, etnia, condição social ou gênero,
por exemplo, sempre me causou incômodo e indignação. Esse espírito questionador
se acentuou na minha adolescência, fase própria da ebulição de sentimentos e
emoções. Quando entrei na faculdade de direito, na Universidade Federal de Mato
Grosso, eu logo comecei a trabalhar, aos 19 anos, estava ainda no meu primeiro
ano da faculdade, comecei minha primeira experiência de trabalho em um
escritório de advocacia. Como estagiária ou já como advogada, trabalhei em
alguns escritórios de advocacia, pequenos e grandes escritórios, em diversificadas
áreas de atuação. Gostava da advocacia, mas sentia que minha vocação não estava
ali, me identificava muito mais com a magistratura. Eu então tive oportunidade
de exercer um cargo em comissão no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, como
assessora jurídica de desembargador, e no exercício dessa função tive certeza
de que a minha afinidade profissional era a magistratura. Passados alguns anos,
já com meus dois filhos, decidi estudar para o concurso da magistratura. Tenho
agora oito anos de magistratura e para mim a carreira traz vários desafios,
dentre os desafios, há duas situações que são muito marcantes para mim. Um
deles é gerir a responsabilidade do trabalho com o volume de processos e a vida
pessoal. O Poder Judiciário tem uma demanda enorme de processos, conciliar a
necessidade de produzir muito com a qualidade das decisões exige atenção
constante, especialmente nos três primeiros anos da carreira, em que tudo é novo
e bastante desafiador. O outro grande desafio é conviver com o receio de dar
uma decisão injusta, especialmente quando a demanda envolve casos de grande
complexidade ou naqueles processos em que a decisão não é óbvia e gera
incertezas sobre o que verdadeiramente aconteceu. Inclusive, muitas vezes a
sociedade tem dificuldade de compreender que as provas do processo são um
recorte da realidade, nem sempre as provas produzidas no processo são capazes
de espelhar realmente o que aconteceu e isso pode gerar muita dúvida no momento
de decidir. E como magistrada, não posso decidir com base no que eu acho que
aconteceu, mas sim, com base nas provas que foram produzidas no processo. Além
dessas questões, a falibilidade é do ser humano, o erro acontece e acontecerá,
o meu objetivo e desafio no exercício da magistratura é evitar ao máximo o
erro, e corrigi-lo quando possível.
Na sua avaliação,
como a mulher pode ser empoderada sem perder a feminilidade?
R: Vou apenas complementar com uma frase o que já
expressei aqui e falar de maneira bem direta – mantendo nossa essência, não
preciso deixar de ser feminina para não chamar atenção dos outros, ou me
masculinizar para me “igualar” aos homens.
No meio jurídico e em tantas áreas as mulheres
vêm ganhando cada dia mais espaço. Como a senhora vê essas conquistas e o que
ainda falta na sua análise?
R: Peço licença para responder
em parte a essa pergunta com a reprodução de uma fala da brilhante Ruth Bader
Ginsburg - segunda mulher nomeada à Suprema Corte Americana. Em uma de suas
últimas entrevistas, quando e interlocutor perguntou a ela, “o que você acha
que foi mais importante na sua vida?” Ruth Ginsburg respondeu: - “Ter tido a
oportunidade de ajudar um movimento em busca de mudança. Uma mudança que
fizesse as filhas serem motivo de orgulho como os filhos. Para não haver mais
espaços onde mulheres não pudessem entrar, como havia na minha infância e
adolescência. Graças a Deus essas barreiras se foram. Você precisa de duas
coisas: talento e trabalho duro, mas não deve haver barreiras artificiais
impedindo você. Inclusive, na minha vida, eu espero ver três, quatro, talvez
até mais mulheres ocupando cadeiras da Suprema Corte. Não mulheres iguais, mas
de diferentes naturezas. Nós avançamos muito, mas temos um longo caminho a
percorrer.” E quando questionada sobre o conselho que daria a jovens potenciais
líderes, Ruth Ginsburg diz: - “Acho que se você quiser que seu país tenha
sucesso, aposte tudo nas mulheres. Esse o meu sonho para as mulheres, tenho
certeza de que nos sairemos muito melhor, se mulheres e homens forem parceiros
de verdade.” No meio jurídico, já há muitas mulheres advogadas, juízas,
promotoras, defensoras etc., no meu concurso, por exemplo, as mulheres
representavam mais de 40% da turma de aprovados. Porém, quando você sobe os
degraus da hierarquia no Poder Judiciário ou no mundo corporativo, as mulheres
ainda são minorias. O que nos falta, em minha opinião, envolve multifatores, e
agora vou falar apenas do Poder Judiciário, que conheço melhor. O primeiro
deles, é o fator temporal mesmo, ainda precisamos de alguns anos (talvez uma ou
duas décadas) para que as mulheres que estão na base alcancem a promoção para
cargos maiores. Outro fator é que, nas condições atuais, muitas mulheres ainda
preferem evitar o desgaste de trabalhar em um ambiente predominantemente
masculino e ainda bastante machista. Poderia mencionar diversas ocasiões em que
mulheres juízas, advogadas, procuradoras etc passam por situações
constrangedoras relacionadas ao gênero. São profissionais que, por exemplo, são
constantemente interrompidas e desqualificadas em sua fala por um outro colega
profissional; assediadas de forma explícita e grosseira por homens em ambientes
de trabalho; que são rotuladas e ridicularizadas pelos colegas nas situações
mais corriqueiras da vida. Situações como essa, ainda que ocorram numa
frequência muito menor que há 20, 30 anos atrás, desestimula muitas mulheres a
concorrerem para os cargos nos Tribunais. Ainda um outro fator, é que vivemos
tempos de polarização de opiniões, de um modo geral a sociedade está com
dificuldade de ouvir o outro; de dialogar; de conciliar com o diferente. A
natureza nos mostra diariamente que a diversidade é importante para o
equilíbrio da vida e eu só acredito em uma sociedade realmente mais justa e
igualitária, a partir de uma conciliação, de uma parceria entre mulheres e
homens, que possamos andar juntos e de mãos dadas, nos apoiando e nos
compreendendo mutuamente.
No seu entendimento quais são as principais
barreiras encontradas pelas mulheres na obtenção de espaço em cargos de comando
na atualidade?
R: Conviver em um ambiente com
machismo estrutural é muito desafiante para muitas mulheres, lidar com
assédios, gracinhas, piadinhas, rotulações que ainda são naturalizadas é
desgastante e, por vezes, dolorido. Essas dificuldades acabam desestimulando
muitas mulheres a ganhar mais espaço nos ambientes de poder. Uma coisa leva à
outra. Por isso, acredito que é preciso dialogarmos mais, nos apoiarmos mais.
Qual a página ou
páginas e redes sociais para que as pessoas possam conhecer mais sobre o
trabalho da senhora?
R: Para todas e todos que
desejarem acompanhar um pouco mais do meu trabalho como Magistrada Federal,
será uma satisfação ter vocês como seguidores no meu perfil no Instagram: @rosangela_martins_juizafederal.