Foto: Dr. Bill
Por Jailton Alves de Oliveira
Fui convidado por
dona Benévola a visitar o reino de dona Feia.
De início fiquei
um tanto estupefato pelo convite feito. Não sabia como Dona Benévola havia me
conhecido. Foi quando na viagem, indo num carro muito chique, daqueles saídos
de filme como velozes e furiosos, Jalau o motorista de Dona Benévola me falou
que sua patroa precisava falar comigo para me pedir um favor.
Nos meus
pensamentos eu ficava a me perguntar por que eu e como Dona Benévola, pessoa tão
importante, de um reino tão distante e famoso poderia precisar de mim. Eu, tão
desconhecido e sem sangue azul, um plebeu daqueles bem eremita saído do meio
das matas.
Jalau, um senhor
sério, compenetrado, discreto, alto, cara lisa e de meia idade e muito serviçal.
Me pediu licença para conversar comigo enquanto íamos para o reino de Dona
Benévola.
Eu conheço o
Senhor, disse ele todo formal e discreto. Você me conhece de onde? Perguntei-lhe
meio que sem jeito, afinal eu não sabia em que terreno estava pisando. O Senhor
é um artista muito importante por lá. Eu, mas eu nunca fui por lá e nem sou
artista. Só pode ser alguém muito parecido comigo. Não! É o senhor mesmo. Dona Benévola
ama as suas peças teatrais, ela gosta do jeito que o Senhor se apresenta. Uma
vez sem querer, é claro, ouvi a patroa dando gargalhadas falando do Senhor.
Mas estou te dizendo que não a conheço e que não sou
essa pessoa de quem você está falando. Dona Benévola não se engana e nunca
erra, tenho a convicção de que o Senhor está falando isso para mim para evitar
um diálogo até chegarmos lá.
Não, nada disso. Jalau me disse: Senhor se segura um
pouco aí que vamos aumentar um pouco o acelerador pois estou atrasado e a
patroa não admite atraso. Jalau apertou um botão no painel de comando do carro
e como um raio passamos a viajar tão rápido por espaços nunca vistos e
imaginados por mim.
Passei no reino do Rei Marvel e vi King kong brigando
para nos proteger quando dinossauros avançaram em nosso carro para nos atacar. A
sensação de medo me invadiu e me senti como se tivesse dentro de um reino de
fantasia. Mas aquilo estava mesmo acontecendo. Meu Deus! Nosso carro como que
num sopro fora arremessado para uma montanha de pedra e gritando de pavor,
sabia que o meu dia havia chegado e que íamos morrer. De repente fomos
acolhidos pelas mãos de King Kong e generosamente ele nos acolheu, nos protegeu
e antes de colocar nosso carro de volta na estrada nos olhou carinhosamente.
Meus olhos cruzaram o seu olhar e senti uma paz daquelas
que sempre sinto dentro de mim quando estou no meio das matas longe de tudo e
de todos.
Nunca mais vou esquecer daquele olhar tão terno, tão
carinhoso e tão amoroso. Aprendi que o que parece ser nem sempre é tão grotesco
e perigoso. De volta na estrada, Jalau apertou um novo botão e como que sugado
por uma chama quente com pingos de água fomos jogados em outro espaço. Dessa
vez não tive medo e uma doce sensação me invadiu e tomou o meu coração.
Estávamos no reino de E.T., deslizando vagarosamente, silenciosamente num reino
tão distante que parecia outro planeta. Eu não sabia descrever aquela sensação,
só sei que o meu coração se abarrotou de uma alegria tão imensa que não cabia
dentro de mim.
Enquanto deslizávamos pelo ar, silenciosamente e
vagarosamente, eu ia vendo as montanhas coloridas, os pássaros voando num
bailado sincrônico nunca visto pelos meus olhos, fontes de águas límpidas que
mais pareciam espelhos refletindo a alma pura do mundo que eu nunca havia visto
no meu mundo. Ví pessoas, não tinham a aparência de mim, mas sei que eram
pessoas de um mundo que nunca havia visto ou pensado existir. Pessoas doces,
carinhosas, amorosas umas com as outras e numa só voz diziam: E.T. está
voltando pra casa, E.T. está voltando pra casa. Dos meus olhos saíam lágrimas
de emoção e de um sentimento nunca sentido antes assim.
É tão bom voltar para casa, é tão bom ter alguém nos
esperando em casa, é tão bom ser amado e esperado. No meu mundo existem milhões
de pessoas que não têm para onde voltar e nem têm ninguém os esperando. É uma
solidão que chega a doer.
O carro dá uma leve parada, e não sei se estou sonhando
ou se estou dormindo ou se estou acordado. O que eu sei é que tudo aquilo está
acontecendo.
Jalau me diz: chegamos senhor.
Desço do carro e vislumbro aquele lugar. É um reino
diferente, avisto montanhas imensas cercadas por um verde indescritível. As
árvores exalam um perfume que inebria a alma e o coração da gente. Os pássaros
conversam entre eles e consigo entender tudo o que eles conversam. Ao lado de
um grande portal, avisto um rio e ouço os peixes conversando e crianças peixes
brincando de cirandas entre as pedras. Vejo pessoas andando como se voassem sem
pisar no chão. É um bailado entre o vento que atravessa as plantas, as árvores
e as flores, os pingos de raios de sol que atravessam os espaços que me rodeiam
e fico deslumbrado e inebriado de emoção.
Um portão imenso se abre e avisto um enorme corredor de
piso branco e paredes límpidas e adornadas por quadros de pessoas importantes
da história de nossa gente. Olho para o teto e vejo a pintura da capela
cistina. Vejo obras de grandes nomes da
pintura de todos os tempos de toda a história e de toda humanidade.
Após o longo corredor, já não sinto mais os meus pés
pisando o chão. Vejo que também estou flutuando. É uma sensação que não consigo
descrever. Chego num grande salão de um teto tão alto que chego avistar as
nuvens.
Dos meus pensamentos saem poesias que aparecem grudadas
nas paredes e se movimentam à medida que vou passando, e vejo as histórias
acontecendo e se refazendo diante de mim. Vejo a dança de cores, luzes e som
numa simbiose entre a poesia o pensamento e a palavra que não é dita, mas
sentida e vivenciada.
Atravessado um imenso salão e chego num outro espaço e
me paraliso não de medo, mas de espanto. Me vejo sendo recebido por mim. É uma
cópia de mim. Esse outro que sou eu e que sabe tudo de mim e converso com ele
sobre nós em mim. Não entendo o que está acontecendo. Sem palavras e sem falar
ele me diz que há muito tempo eu estava sendo esperado por dona Benévola a
Rainha desse lugar. E que ela estava me esperando nos seus aposentos. Esse
outro me levou até dona Benévola. Agora eu sabia o porquê de Jalau ter me dito
que dona Benévola adorava os meus espetáculos. O artista de quem ele, Jalau,
falava, era esse outro eu, que eu não sabia que existia.
Perguntei a mim que era esse outro, como eu deveria me
comportar diante da Rainha. Perguntei se eu precisava flexionar os joelhos para
poder falar com ela. Fique tranquilo, por aqui não existem essas coisas fúteis
do mundo de lá. E comecei a pensar em que mundo eu estava. O meu outro me disse:
Você está no mesmo mundo, é que aqui, o véu que cobre os olhos de todos estão
descerrados e por aqui todos são iguais. Humanos que sentem, que choram de
alegria e de emoção e não de dor. Aqui vivemos o coletivo naturalmente.
Chegamos. A Rainha Benévola abriu os braços quando me
avistou e fiquei extasiado de alegria e de emoção. Como uma Rainha me recebia
com tanta alegria, eu, um plebeu, saído do meio das matas.
Ela me abraçou, sorriu carinhosamente e me disse sem
verbalizar uma palavra, todas as coisas que eu precisava saber. Nossos
pensamentos estão conversando. Que estranho! Eu pensava antes de vir aqui que
os pensamentos não conversavam. Eu só ouvia isso em filmes de ficção. Agora sei
que tudo isso é verdade e que é possível. Basta aprender a olhar, a ver e a
enxergar o mundo com os olhos do coração. Agora entendo por que Jesus disse que
“só entrará no Reino dos céus quem tiver um coração de criança”. Infelizmente
quando crescemos perdemos a inocência.
Agora entendo por que Firmino Rocha, poeta baiano da
cidade de Itabuna, a mesma de Jorge Amado, disse que “deram um fuzil ao
menino”. Mas isso é outra história. Vamos voltar para cá.
A Rainha Benévola me levou a passear por todo o seu
reino e me disse coisas que só o coração pode compreender. Me emocionei muito
durante o percurso e ela me perguntou por que eu chorava. Lhe respondi que não
queria mais voltar para o meu mundo porque aqui era maravilhoso e era esse
mundo que eu sempre procurava. Ela riu e disse para mim que podemos viver e ser
assim em qualquer mundo. E que para isso bastava deixar o coração falar. Sem se
preocupar com o que o outro pudesse pensar sobre você. Ser feliz é uma questão
de escolha e que só se vê bem “com os olhos do coração” como dizia Saint
Exúpery. Infelizmente no mundo que você habita, algumas pessoas só valorizam as
coisas quando perdem. Aí é tarde demais.
Mas deixa pra lá, não somos os donos do mundo. Viver e
ser feliz é sempre uma questão de escolha.
Bem vamos ao que interessa: Eu te convidei aqui para
pedir a sua ajuda. Lá no Reino de Dona Feia, minha irmã que tanto amo, tem
tidos alguns problemas e convivendo aqui com você no reino de cá penso que você
poderia me ajudar, claro se puder e tiver disponibilidade. Mas eu, logo eu?
Sim, você mesmo. Olha sei de você há muito tempo. Gosto de como você ama as
suas pessoas. O que gosto em você é que você sempre deixa o coração falar mais
alto, e isso é muito bom apesar das dores, e são tantas as dores...
É de pessoas
assim que precisamos para melhor contribuir com a humanidade em nós. O que
gosto em você é que está sempre acreditando no ser humano e isso é o que vale.
Se formos deixar de acreditar na humanidade o sentido da vida para de existir e
dessa forma será o fim de todos os nós.
Me conte Dona Benévola. Qual o problema?
Acontece que no Reino de minha irmã tem ocorrido uma
série de eventos que podem colocar toda a população em risco.
Como assim? Ela está começando a parecer a ditadores dos
Reinos do mundo de lá.
No mundo de lá, de onde você veio, os Reis, Líderes,
Presidentes e coisa do tipo têm medo do diferente e dos desiguais e tentam
padronizar todos para manipular com mais facilidade. Temo que minha irmã esteja
se contaminando com essas coisas de lá.
Minha irmã é muito feia, feíssima, chega a ser medonha e
não admite ninguém mais feio do que ela. E lá tem acontecido um fenômeno muito
estranho.
No nosso Reino de cá acreditamos no diferente, na
diversidade, no coletivo e sobretudo no amor. Sem amor tudo deixa de existir.
No Reino de Dona Feia a maioria das pessoas está se
padronizando e isso é muito perigoso porque é dessa forma que os ditadores
fazem e se refazem nas derrotas da humanidade, imprimindo a divisão, dizendo
que é em nome da Pátria, da Família e de Deus.
E isso me preocupa muito. Estávamos a assistir aqui
àquele filme da pequena sereia. Você conhece? Sim, conheço. Pois bem. Lá no
reino de minha irmã Dona feia vi algo que me espantou. Vi por exemplo todas as
mulheres, todas, todas elas, crianças,
jovens e adultas com aplique de kanecalon, aquele tipo de cabelo sintético bem
conhecido no mundo das tranças. Pois bem, vi todas as pessoas do gênero
feminino usando esse tipo de cabelo postiço que chegava a bater até a batata da
perna. Fiquei a pensar: Todas as mulheres agora se transformaram em pequenas e
grandes sereias? Como no filme?
Vi também todos os meninos, jovens, e adultos da mesma
forma. Todos iguais. O mesmo cabelo, o mesmo modelo de roupa, de sandália, de
bolsa, de calça, de vestimenta, enfim a indumentária exatamente igual para todos.
E fiquei a me perguntar se o bonito é o diferente, como minha irmã, Dona Feia,
está calada sem tomar uma providência em seu reino, sem discutir com todos que
é na diversidade que a beleza da feiura existe e não na padronização que está
ocorrendo em seu reino. “E eu não estou dizendo isso como uma crítica, mas como
uma constatação” como disse um amigo meu, Dr. Bill, que sempre quando estou com
dores ele vem me atender e me cura com as suas mãos.
E isso me preocupou porque no seu mundo de lá, os
ditadores tomaram a posse das almas dos seus cidadãos exatamente dessa forma,
classificando e encaixotando as pessoas em salas, gavetas, caixas, grupos. E
assim a violência generalizou-se.
Minha irmã A Rainha Dona Feia, se não tomar uma
providência em desenvolver no seu reino a necessidade de mostrar a beleza da
feiura na diversidade, o seu reino vai terminar copiando o reino de lá do seu
mundo.
Por isso eu gostaria que você aceitasse o convite de
passar uma temporada no Reino dela para, com o seu jeito de ser e de viver, sem
falar, que viver o diferente e ser diferente é o mais bonito da vida.
Percebo que por lá, a minha irmã tem estado entristecida
pois ela não permite ninguém mais feia do que ela. Essa história do povo de lá
disputar quem fica mais feio ou mais feia do que ela é perigoso porque pode se
começar uma guerra civil. Sei que minha irmã tem um comportamento que às vezes
sinto medo. Ela pode criar uma guerra com a desculpa de que seus súditos estão
querendo ser mais feios do que ela. Mas a verdade está por trás das cortinas e
dos olhares. O véu que cobre os olhos do povo de lá está sendo tecido
perigosamente e vagarosamente com a desculpa de que ser igual é uma forma de
luta e de resistência. E isso é um ledo engano.
Me preocupou muito quando fui visitá-la que seu povo não
mais sorria, não mais dançava, não mais cantava. Vi nas suas praças uma
multidão vestida padronizada que aglomeradas amedrontavam os diferentes deles.
E isso é o início de uma guerra que se não evitada pode disseminar para vários
continentes.7
Por isso preciso da sua forma de ser e de ver o mundo
vivendo no Reino de minha irmã, até para eu saber se as minhas preocupações são
realmente reais.
Leve sua alegria, sua arte, seu jeito de ser para lá e
viva por lá por um tempo. Como eu te disse:
Não precisa falar nada. Basta ser o que você é e quem
você é.
Essas são as minhas preocupações. Tenho medo de que no
mundo de cá, as coisas de lá do seu mundo afete nosso planeta. Pois somos um só
planeta, uma só vida, dividida em várias partes que habitam no nós.
Mas, Rainha dona Benévola, e se eu não conseguir. Não se
preocupe. Terá valido a tentativa. Não podemos interferir no curso natural da
existência, porém, se quisermos podemos contribuir com a construção do
Universo, distribuindo e compartilhando amor. Lembra daquele olhar nos olhos de
King Kong quando você cruzou os seus olhos nos dele? Lembra quando E.T. voltou
para casa e todos, todos ficaram felizes com o seu retorno? Lembra que todos eram
diferentes e de uma beleza estonteante, de uma feiura belíssima que exalava
amor. Pois é. Só dessa forma que podemos viver para que nossa espécie continue
a existir. Não existe outra saída.
Confiamos em você. Confiamos na sua forma de amar. Lembre-se
de que você é daqui e de lá do seu mundo. E que a sua essência sempre será a do
amor. Sei que você nunca vai desistir. E quando você estiver entristecendo e
pensando que foi vencido, feche seus olhos, seja o eremita que você sempre foi,
respire a alma da Mãe Natureza e se lembre de que você é também daqui e sempre
estaremos juntos, pois somos tecidos dos meus fios que une todo o Universo. Vá
e muito obrigado. Estamos sempre em nós.
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